segunda-feira, 3 de maio de 2010

Justiça e Paz e o problema da imparcialidade na atuação jurisdicional

É de longa data a associação entre os termos Direito, Justiça e paz social. Ou seja, a experiência jurídica na sociedade ocidental é uma experiência histórico-cultural, de natureza ética e normativa, que tem como valor fundante o bem social da convivência ordenada, ou o valor do justo.
Conforme afirma Miguel Reale (2002), o valor do próprio Direito é a Justiça, tendo como fonte o valor da pessoa humana e o valor do justo, que em última análise, significa a coexistência harmônica e livre das pessoas segundo proporção e igualdade.
Todavia, contrariando tal concepção abrangente de Justiça e sua complexa relação com o direito e a paz social, construiu-se no senso comum uma noção de “justiça cega”, simbolizada pela representação da deusa da Justiça, a deusa Têmis, com os olhos vendados, designando o caráter cego da justiça e a imparcialidade que convém ao trabalho do juiz.
Essa simbolização da Justiça advém dos romanos, que viam em Têmis o lado alegórico da imparcialidade do julgador. Ou seja, a deusa da Justiça era o modelo a ser seguido pelos pretores romanos, que deveriam estar isentos de qualquer suspeita ou faccionismo, capaz de favorecer uma das partes.
Todavia, uma análise mais detida dos textos clássicos gregos nos leva a questionar a existência de imparcialidade da/na Justiça. Ora, se retomarmos o espírito originário dos gregos relativo à idéia de Justiça, desaguaremos na equidade. Ou seja, a Justiça do caso particular, em que a solução judicial deverá sublimar a dureza do direito positivo em prol das condições especiais de uma situação concreta, evitando que uma aplicação genérica e fria da lei redunda em injustiça.
A consolidação dessa noção de “justiça cega” se deu especialmente a partir da segunda metade do século XX, no contexto da emergência do Estado Moderno, tendo como fundamento a teoria clássica da separação dos poderes, e a defesa da atuação livre dos órgãos estatais em contraposição ao exercício do poder na época medieval, caracterizado como arbitrário e autoritário. Na base dessa teoria estava contida a idéia de separação entre Política e Direito, que determinou a neutralização da política no exercício da jurisdição.
Assim, conforme destaca Apostolova (1998), o Poder Judiciário tinha que orientar a sua atuação de acordo com o princípio da legalidade que transformava a aplicação do Direito em subsunção racional-formal dos fatos à normas, desvinculada de referências éticas e políticas. O que nos leva a afirmar que a imparcialidade na aplicação do Direito é uma grande injustiça em potência, pois conduz ao distanciamento da atuação do juiz do campo da política e da ética.
Nesse sentido, o Direito deixa de ser instrumento de equilíbrio das relações inter-individuais e elemento ordenador da vida social, pois além de não resolver de forma satisfatória os conflitos, abre lacunas para o uso das vias extrajudiciais, incrementando o desenvolvimento de mecanismos privados de solução de litígios (como o linchamento e o extermínio de pessoas por milícias armadas), de caráter anti-social e não submetidos à normatividade estatal.
Portanto, não há como negar que a deusa representante da justiça não é aquela que perde a visão dos fatos, da ordem e do justo, mas aquela que diante do caso concreto busca a solução mais justa através do desvendamento da realidade dos fatos cotidianos que chegam em forma de litígios ao Poder Judiciário, tendo em vista o equilíbrio entre a vantagem auferida pelo indivíduo e pela coletividade, simultaneamente.
Não é demais reafirmar que a Justiça é a essência, a idéia principal, e não acessória, do Direito e da paz social.

APOSTOLOVA, Bistra Estefanova. Poder Judiciário: Do moderno ao contemporâneo. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998.
PINTO JÚNIOR, Nilo Ferreira. A Deusa da Justiça. Discutindo Filosofia. São Paulo, Ano 2, nº7, p.58/61.
REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. São Paulo: Saraiva, 2002.

Nenhum comentário:

Postar um comentário