domingo, 30 de maio de 2010

Pouso sem Repouso


POUSO SEM REPOUSO


Ora, uma vez, em priscas eras, deu-se que a pomba da paz, fatigada de voar e de não encontrar pouso – o planeta, nessa época, era bélico, histérico e reincidente no abuso anti-ético- pensou que, à maneira dos tempos de Noé, teria que aguardar mais de 40 dias para achar um galho, que fosse na Gália ou Ibéria. E a pomba, como se saísse de um soneto de Raimundo Correia, numa madrugada sanguínea e fresca, achou uma estátua vaga, não uma estátua vagando, mas simplesmente e verossimilmente estátua, estática, estacionada e com cara de ora-veja. Era a estátua de Astréia, “aquela deusa pelos sábios nomeada, que traz nos olhos a venda, balança numa mão e na outra a espada”, conforme um passarinho contou à pomba, pois o passarinho era versado em versos de Tomás Antonio Gonzaga.

A pomba, então, pousada no cocuruto de Astréia, parafraseando o poeta inconfidente, depenou essas questões:

- Eu vejo, na sociedade, muitos crimes e falhas; eu vejo a morosidade da Justiça, eu vejo campear a corrupção, eu vejo a vida dos pobres cada vez valendo menos, eu vejo a insegurança em toda parte e em toda parte a minha presença é nada...

Enquanto piava e clamava, a pomba não notava que a deusa não lhe ouvia com gosto, enrugava o rosto, e ia fechando a cara. Mas a pomba continuava:

- Eu não vejo a honra, eu não vejo a honestidade, eu não vejo a ética, eu só vejo egoísmo, eu só vejo consumismo, eu só vejo a baderna dos arrivistas e o histerismo sensacionalista! Será que não pode haver Direito que te mova a indicar os culpados? Será que não existem provas para cessar toda essa espúria afronta que a mais murcha das musas canta?

Aqui, aqui a deusa deixou escapar um suspiro. Ela já tinha ouvido algo parecido, quando o poeta Dirceu, antes ele do que eu, quis tirar o seu da reta e dedurou Tiradentes como um homem sem juízo. Astréia moveu-se um pouco, tentando sacudir a cabeça e jogar a pomba no chão. E a pomba da paz bicou outras indagações:

- Ainda não ouviste tudo, sossega, atende e me entenda, achas que perco meu tempo, meu vôo, meu insolúvel ovo de esperança? Não sabes quanto sofro por atravessar fronteiras em busca de uma paz que não seja passageira? Eu, ó cega, não tenho fortuna, só me alimento de esperas, e estou cansada de ver só prosperar a inveja e o poder do dinheiro, o tráfico de armas e drogas, o tráfico de influências, o sucesso dos aventureiros que não permitam que o ramo de oliveira se alastre pela Terra inteira...

Aqui, neste ponto, Astréia toda se altera, como se fosse assaltada por antediluviana TPM, tentação pela magistratura, mordendo seu próprio beiço, deixa o sítio em que estava, e vai vagando, sempre às cegas, empunhando sua espada cega e a balança abalada. A pomba, vendo ao longe, no Irã, uma explosão de bomba, correu para procurar um gramático para trocar o p pelo b e dar um up grade.


(Livremente inspirada na Lira XXXVIII de Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, segunda parte)

2 comentários:

  1. uh, que crônica massa! ainda por cima com citação de marília de dirceu, livro que li no vestibular e do qual nunca me esqueci!

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  2. a deusa da justiça é artemis ou astreia, estou em dúvida.

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