quinta-feira, 20 de maio de 2010

TOLERÂNCIA, JUSTIÇA E PAZ

(Considerações do Ministro do STJ Edson de Carvalho Vidigal)



“A paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de
que serve para o conseguir. Por muito tempo pois que o direito ainda
esteja ameaçado pelos ataques da injustiça – e assim acontecerá
enquanto o mundo for mundo – nunca ele poderá subtrair-se à violência
da luta. A vida do direito é uma luta: luta dos povos, do Estado, das
classes, dos indivíduos”.



Ora, quem não se lembra de Von Ihenrig em seu instigante “A Luta Pelo Direito”? Onde a democracia é miragem essa luta nunca acabará enquanto resistirem os arraiais da injustiça.

Perante as populações pobres, sem cidadania, portanto, sem qualidade de vida, o direito não se contenta em ser apenas um conjunto de normas voltado para a convivência harmoniosa nas relações humanas.

Mais que isto. Transmuda-se em escudo e lança, não só contra a opressão do Estado, mas também contra os que, à sua sombra, imantados pela impunidade e, assim, fortalecidos pelo arbítrio, sentem-se mais estimulados a prosseguirem em suas falcatruas.

Não devemos ignorar nunca a advertência do Profeta Isaias para quem a paz não é a ausência de guerra mas uma obra da Justiça. Lutando pelos nossos direitos consagramos a democracia, realizamos a Justiça, possibilitamos a harmonia, ensejamos a paz.

O direito não pode ser privilégio nem de especialistas nem dos que, podendo contratar para suas demandas, na justiça estatal, os melhores causídicos, conseguem que as leis sejam interpretadas sempre a seu favor. Precisamos estar atentos para que o espírito das leis não se distancie nem se perca de sua destinação maior, que é a Justiça.

O direito não tolera, por exemplo, o peculato e são tantos os peculatários hoje em dia que o Ministério Público, em quaisquer de suas esferas, jamais conseguirá dar conta, formalizando denúncias contra todos eles.

O que desqualifica hoje qualquer elogio que se queira fazer à nossa democracia é o triunfo visível da impunidade, o descaramento com que conhecidos ladrões do dinheiro público afrontam, no cotidiano, as pessoas que levam vida difícil mas sempre honesta, que pagam impostos e que, na contrapartida, não recebem do poder público o mínimo dos serviços públicos que o Estado, por conta dos impostos que cobra, tem a obrigação de assegurar.

Quem furta dinheiro público mata criancinhas, frustra os jovens, sufoca em suas esperanças homens e mulheres, oprime a velhice. Quem furta o dinheiro público destrói, por antecipação, os projetos de escolas, de hospitais, de estradas, de financiamentos da casa própria, da produção e da colheita, de água encanada, de esgotos, de saneamento urbano, de acesso à luz elétrica, ao telefone, ao transporte coletivo.

Quem furta o dinheiro público e, fortalecido pela impunidade, continua furtando, não apenas propaga seu mau exemplo. Dissemina a injustiça e daí a convocação da cidadania para a mesma luta pela afirmação do direito.

O direito é um estado de democracia, no sentido de que as normas legais destinam-se à proteção da pessoa humana. Essa proteção não se resume, evidentemente, à integridade física, à saúde física ou mental. Compreende um conjunto de preceitos que se ajustam em garantias da dignidade, condição primeira para que a pessoa humana se realize como criatura de Deus.

Para que a humanidade chegasse até aqui, a este patamar de várias declarações universais de direitos, muita gente sofreu por conta da intolerância. Um dos casos mais marcantes, o de Jean Calas, ocorrido na França, em 1761, atraiu as atenções de Voltaire cuja atuação, no caso, como advogado, resultou na absolvição ainda que post-mortem do acusado. Desse enredo, ele tirou matéria real para o seu “Tratado Sobre a Tolerância”.

Em resumo, naquele caso, foi a vitória do direito e da justiça verdadeira, ainda que tardia, contra a intolerância incrustada no sentimento das massas e que, em muitos casos tem apoio no nosso direito processual penal sob a capa de clamor público.

Predominava, naquele tempo, numa aliança dos clérigos com o poder político, a religião católica. Jean Calas, de 63 anos, morava com a família em Toulouse, França. Preparava para sucedê-lo, em sua loja, Marc-Antoine, seu filho de 21 anos. Mas não querendo ser comerciante, o jovem foi estudar direito. Não conseguiu licença para advogar porque não era católico. Tinha que renegar a sua religião de origem familiar e converter-se ao catolicismo. Recusou-se.

Um dia foi encontrado morto e logo o clamor público, manipulado pelo clero local, apontou que seu pai, Jean Calas, o havia assassinado.

Inquérito, processo, tudo nos conformes do devido processo legal e o acusado sempre protestando inocência. No Tribunal, um Juiz proclamou que não havia evidências para que fosse declarado culpado. Um outro, mais radical que os demais, proclamou que Jean Calas era, sim, o assassino do próprio filho. Os dois Juízes, um radicalmente contra e outro radicalmente a favor, foram afastados por suspeição.

O clamor público continuou exigindo “justiça” e o Juiz que era radicalmente a favor da condenação foi chamado de volta ao colegiado, reforçando o que as hordas e os clérigos queriam. Os outros Juízes ficaram em dúvida quanto a verdadeira culpabilidade ou não do acusado.

O chefe dos clérigos, o bispo local, foi então aos Juízes e os convenceu a sentenciarem Jean Calas como culpado. Quando fosse executado, na roda, na praça pública, não resistiria às torturas iniciais e, assim, para livrar-se, acabaria confessando. Ou seja, o Judiciário da época lavrou uma sentença condenatória com base numa prova que ainda não havia, numa confissão que poderia ser feita, numa suposição, uma prova, dir-se-ia, pré-constituível.

O homem morreu sofrendo todas as torturas e jurando inocência o tempo inteiro. Quanto maior o grau da tortura, mais ele protestava inocência. Os juízes, então, desconcertados não se animaram mais a outras condenações sem confissão limpa ou provas incontroversas.

Entre nós, nos dias de hoje, quantos ainda por conta da intolerância manipulada sob o pseudônimo de clamor popular não tem morte moral sumária ou não pagam penas por antecipação, submetidos a decretos judiciais de prisões provisórias ou preventivas?

Quantos só muito mais tarde são declarados inocentes depois de terem sofrido os constrangimentos da intolerância, que em muitos casos se faz passar como tradicionais preconceitos?

Aquelas trevas da intolerância retornam fortes nos tempos de agora a quererem nos cegar para a razão. Só a razão nos faz precisar do direito e só com democracia nosso direito pode valer nos assegurando Justiça. E Justiça não se resume à declaração formal de direito pelo Juiz ou Tribunal entre os demandantes, a favor de um e contra o outro.

Essa é a Justiça mínima! A democracia impõe ao Estado de Direito outra forma de Justiça, mais abrangente, preventiva de todas as injustiças, a Justiça social. Que tal saber ler e ter em mãos, todo o dia, um exemplar da Constituição Federal, fonte de todos os direitos e garantias, individuais e coletivos, e olhar em volta a mulher triste, os filhos desocupados, sem escola, sem aprendizado, sem lazer, a mesa vazia?

Que tal ler todo dia essa Constituição e ser assaltado na rua e depois tudo ficar por isso mesmo? Há lugares em que as estatísticas da criminalidade caem porque fechando as delegacias de policia não há mais registro algum a fazer. Que tal levar o exemplar da Constituição no bolso e conferir em sua cidade que o titular de mandato eletivo enriqueceu à custa do dinheiro público e nada lhe acontece? É possível hoje, diante de alguma informação revoltante, viver conformado, aceitando em silêncio que o ladravaz que nunca trabalhou a sério transite serelepe pelos itinerários do poder e ainda ouse ameaçar os que os denunciam ou os sentenciam por suas falcatruas?

Numa democracia ninguém chega a cargo eletivo sem ter sido antes candidato. Essa palavra candidato é de origem latina. Na Roma antiga, as pessoas que pleiteavam cargo público, mediante eleição, saiam às ruas vestindo uma túnica branca e brilhante, chamada de toga cândida. Era a forma de se mostrarem que eram limpas para o exercício do cargo. Quantos poderíamos ver hoje, saídos desses partidos políticos, quase todos marcas de fantasia, vestindo a toga cândida e, assim, se diferenciando dos outros concorrentes?

A enganação política, que privilegia o marketing em detrimento do trabalho sério; a mentira das eleições vencidas a qualquer custo, sem respeito ao princípio da igualdade na disputa; a passividade com que setores mais esclarecidos, incluindo aí intelectuais, vêem e fingem não ver tantas agressões não só ao erário como também à boa fé e à inteligência das pessoas, isso tudo é fermento de realidades injustas.

A tolerância não pode ser um pacto de cumplicidade entre os meliantes e suas vítimas. Devemos ser tolerantes, sim, com a diversidade de idéias, de opiniões, de religiões, de filosofias, de ideologias, de crenças. É dever de toda pessoa civilizada respeitar o outro por mais que não admita comungar de suas opiniões. Devemos ser intolerantes, sim, com o bandalho, com o crime, com o opróbrio, com a injustiça, em quaisquer de suas formas. Enfrentando a impunidade, damos valor ao direito e prestigiamos a Justiça.

Combatendo as injustiças, damos chances à paz.

Compreendendo as idéias diversas, respeitando-as, reforçamos a democracia, que só se realiza na convivência com os contrários.

Só com Justiça e Paz podemos ter um Estado próspero e um Povo feliz.



Discurso proferido em São Luís, Maranhão, no encerramento do XI Congresso Estadual dos Advogados do Maranhão, promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil, subsecção do Estado do Maranhão, sob o tema “Direito, Fundamento da Paz”, em 12 de dezembro de 2001.

DISPONÍVEL EM: http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/307 , acesso em 19/05/2010


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